Consciência da realidade negra
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O tempo escorre como gotas de orvalho pelos séculos sem fim, e em sua cadência observa a agonia de povos em continentes arrasados por hordas de homens civilizados que, em sua avidez desmedida pelo lucro e acumulação de capital, põe em marcha uma nova ordem mundial, que se inicia com as grandes navegações, invasão de novas terras e possibilidades inéditas de explorações em ambientes inóspitos e estranhos aos costumes europeus. As explorações comerciais, a invasão, domínios e colonização de terras e povos, constituem um processo denominado mercantilismo, embrião do modo de produção capitalista que irromperá no século XIX, com força máxima, fruto da acumulação de capitais possibilitados pelas hecatombes iniciadas no fatídico século XVI e intensificadas nos séculos seguintes, nos territórios conquistados, subjugados. Nesse panorama destacamos como exemplo, a África.
África, berço da civilização humana e de grande diversidade cultural, que se vendo tomada de assalto pelos horrores causados pela nova ordem que visava, apenas seus objetivos, nada pode fazer para evitar os atrozes crimes que geraram tanto sofrimento, tanta dor. África mãe de filhos e filhas desgarrados, que teve de amargar suas dores, sem consolo; veias abertas, fluxo contínuo de um sangue que não para de jorrar para alimentar a sanha de vampiros sedentos de gerações das quais se serviriam como escravos em terras estranhas de além mar. Continente de ilusões perdidas em oceanos de lágrimas e de tormentos sem fim. Negros filhos entregues a famigerado destino. Felizes foram aqueles que sucumbiram às doenças, maus tratos, porque escaparam do suplício do inferno em vida. Seus clamores e gemidos ressoam do fundo desse tempo sem fim, ao senhor Deus dos desgraçados, para que suas angústias e aflições encontrem o lenitivo que ponha fim a essa condenação sem crimes. Morte em vida em nome do progresso material. Morte pela colonização. Morte para a colonização.
Colonizar. Bela palavra que nos remetem aos clássicos filmes de Hollywood e Broadway, quando exibem triunfantes, a saga de heróis que, arriscando-se, contra índios selvagens e desalmados, buscam o desbravamento de territórios despovoados, a fim de levarem o progresso, a civilização e o conhecimento, estabelecendo um novo modo de vida aos primitivos habitantes pelos exemplos e ensinamentos de uma raça superior. A vida dos sonhos que os colonos europeus pregavam com delírios de superioridade, estava respaldada por uma doutrina colonial que buscava justificar, baseando-se em promessas divinas, que colocaria no paraíso, aqueles que conseguissem livrar os primitivos bastardos do estágio de barbárie e alçá-los à condição de civilizados. Simbologia da vitória da civilização contra a barbárie, essa fantasia não terá um final feliz para nenhum dos povos subjugados. Afinal, o deus dominante é branco, europeu e livre das subjetividades espirituais em que estavam baseadas as crenças daqueles povos. Não há acordo. Não há clemência.
Eis o ponto alto, o cerne dessa discussão. Em palavras mais consistentes, o racismo é uma construção ideológica que visa a justificação da superioridade europeia, ante todos os povos do mundo, mas principalmente, focado contra os povos autóctones, primitivos. Uma produção falaciosa, respaldada por religiões aliadas do poderio econômico que se perpetua pelos séculos afora e deságua na atualidade, com suas implicações, dores, exclusões e genocídios. Mais do que pressupor a existência de uma hierarquia racial biologicamente determinada, o racismo alimenta no imaginário coletivo as noções de superioridade branca e inferioridade de outros grupos étnicos, não reconhecendo a humanidade desses grupos. Resta-nos, então, indagar: se os princípios filosóficos e religiosos do cristianismo estão baseados na fraternidade, igualdade e justiça, porque as religiões optam por se colocar ao lado da exploração, da violência, da desigualdade e do terror contra pessoas e povos indefesos? Além disso, no caso específico do Brasil, por que a Igreja Católica atuou perante os próprios negros para aceitação de sua condição desumana de exploração, facilitando, destarte, a manutenção e o fortalecimento dessa condição que vem contra seus princípios?
Brasil, continentalidade histórica com enormes dificuldades na admissão do racismo, conduz sua trajetória de construção material e riquezas construídas com sangue e suor de povos negros e indígenas, que a História quer esconder, omitir, negar, mas não pode apagar da memória desses povos, as atrocidades sofridas, nem as perspectivas de realizar-se, negadas. Nos processos e projetos de dominação da elite brasileira, não há espaços, nem tréguas para os oprimidos. Não há conciliações possíveis. Ela segue obstinada em suas diretrizes de violência, genocídio, e submissão, mantendo sob opressão, amplo espectro da sociedade brasileira em lugares sociais de marginalidade, de exclusão. Por isso, a importância, permanência e atualidade das discussões de um processo que se reatualiza, mas que em essência continua o mesmo. Quebrar os elos dessa corrente, resistir política, culturalmente e lutar por um projeto social transformador que viabilize valores éticos como a dignidade, a vida e os direitos humanos, é a exigência de um processo contínuo de libertação; é a viabilidade de caminhos próprios.
Nesse sentido, passo importante é a desconstrução do mito da democracia racial, elaborado com o objetivo de alinhavar e explicar um projeto de identidade nacional, de caráter ideológico para enaltecer a morenização romantizada da população como se houvesse naturalidade no cruzamento das raças envolvidas. Conveniente ignorar os fatos sociais em que a raça negra foi prostituída e, prostituição de baixo preço, já que a existência de mestiços, inclusive da mulata significa o “produto” do prévio estupro da mulher africana, objeto de exploração sexual. A implicação está em que, após a brutal violação, a mulata tornou-se, apenas, objeto da luxúria e cupidez do branco, objeto de exportação e fruto de uma nação formada na promiscuidade, retrato da sociedade brasileira. Cai por terra todo aparato elaborado para justificar a democracia racial, que considera as relações raciais, livres do racismo, uma vez que, as formas de discriminação diferem das práticas adotadas em outros países. Inútil tentativa de se vender uma imagem que não corresponde à realidade, contudo a omissão do estado respalda os mecanismos de segregação, favorecendo a perpetuação das injustiças.
Para Abdias Nascimento, é preciso que o povo negro e mestiço desenvolva a consciência de que há uma guerra sem quartel, nem descanso contra si, realizada pelos órgãos e instituições do sistema de poder público, justiça criminal, polícias, governos, legisladores, intelectuais, imprensa etc. Uma guerra nunca direta, sem nenhuma piedade ou compaixão. Uma guerra nunca de direta confrontação, mas sutil e indireta perseguição. Persistente e sem pressa, dessas vítimas do “destino”, pervertendo ou negando a eles seus direitos civis, subvertendo seus direitos à educação, negando-lhes assistência pública ou qualquer tipo de apoio oficial para custeio de educação ou subsistência. No entanto, qualquer tentativa de conscientização afro-brasileira de que existe em marcha um projeto de genocídio e eugenização dessas populações, soa para a camada dominante como ameaça ou agressão retaliativa. Buscar o conhecimento de sua história, aprofundar-se nos fatos e ocorrências das realidades étnicas, entender os mecanismos da injustiça racial e opressão são os grandes desafios por que passa esse grande segmento da população.
Por fim, precisamos compreender que as desigualdades reinantes no país, não são obras do acaso, nem frutos do destino, mas são social e historicamente construídas em benefícios de uma classe privilegiada que para manter o status quo, sempre teve a sua disposição os meios necessários e contou com um estado garantista, fomentador da riqueza de uma pequena fração branca que apoiada na barbárie, construiu pela rapinagem, roubo, expropriação e crimes, os grandes domínios territoriais e econômicos. É fato historicamente comprovado que as ideias dominantes de cada época são as ideias da classe dominante. No entanto, estas não teriam influência suficiente para impor essas ideias, não fosse, por exemplo no caso atual, a submissão por conveniências, da classe média que em busca de uma fatia do capital, atua como bedel na tecnoburocracia e como algoz das classes populares, que afinal, são estranhas e sem humanidade. (para elas)
Não objetiva esse trabalho, navegar pelas águas turbulentas da discórdia, fomentar ou disseminar discurso de ódio. Como outros trabalhos de mesma natureza, busca atuar na reflexão e entendimento da realidade brutal em que brasileiros vêm sendo alvo há mais de quatro séculos. Por conseguinte, a análise e denúncias do racismo como elemento de um universo mais vasto que compõe o sistema de opressão, apresenta-se como obrigação para o conjunto da sociedade e, simultaneamente, imenso desafio para todos. Combatê-lo sim, combate-lo sempre. Para tanto, é fundamental instigar políticas, estimulando a organização dos grupos étnicos oprimidos, a sociedade consciente e as instâncias governamentais, a fim de retirá-los da inércia, porque é catastrófico para os povos subjugados esse sistema trágico de poder. Percebamos que provocar a elaboração de políticas de inclusão e ocupação de espaços nas esferas institucionais e sociais, é mais que um apelo ético, mas que um grito desesperado por justiça, é sobretudo, a conquista da humanidade negada, o antever de um novo dia, um horizonte de possibilidades. O devir.
Airton Santos, nascido no século passado no Recôncavo Baiano. Seu cotidiano da infância e juventude foi recheado de manifestações culturais, pelas quais é um profundo admirador e amante. Ser humano comum, busca mergulhar e compreender os aspectos culturais que o faz grande, que o faz único, que o humaniza. Como retribuição a tanta generosidade, expressa com palavras pobres de metáforas, as ricas experiências que a cultura possibilita. Seu autodidatismo lhe permite navegar por esse fantástico mundo sem muita responsabilidade, mas com leveza, respeito e amor.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
RODNEY,William. Apropriação cultural – São Paulo: Editora Jandaíra, 2020.
Nascimento, Abdias . O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978.
MUNANGA, Kabengele. Negritude: usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica, 2009
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
ALMEIDA, Sílvio. O que é racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018.
SOUZA, Ana Lúcia Silva (et. al.). De olho na cultura: pontos de vista afro-brasileiros. Salvador: Centro de Estudos Afro-orientais: Brasília: Fundação Palmares, 2005.